quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

As bruxas da Nova Inquisição




A idade média foi um período ruim para um herege. Qualquer descuido levantava a fúria das hordas de detentores da moral cristã. Parece que na história humana sempre houve aqueles que lutaram para possuir o monopólio da ética. De lá para cá a coisa não mudou muito, só o que mudou foram os atores e o discurso, porém, o objetivo é sempre o mesmo: se locupletar com um naco de poder e assim saciar o vazio da vida mundana. Mas que poder é esse que os inquisidores e suas hordas populares experimentam quando gritam a plenos pulmões: “queimem a bruxa”!?  - É o poder sórdido da acusação. Uma pequena fábula de Fontaine nos ajuda a entender esse fetiche:

O Lobo e o Cordeiro (tradução: Ferreira Gullar)

na água limpa de um regato,
Matava a sede um cordeiro,
Quando saindo do mato,
Veio um lobo carniceiro
Tinha a barriga vazia,
Não comera o dia inteiro.
-Como tu ousas sujar
A água que estou bebendo?
- rosnou o Lobo a antegozar
O almoço. – Fica sabendo
Que caro vais me pagar!
- Senhor – falou o Cordeiro-
encareço à vossa Alteza
que me desculpeis mas acho
que vos enganais: bebendo,
quase dez braças abaixo
de vós, nesta correnteza,  
não posso sujar-vos a água.
- Não importa. Guardo mágoa
De ti,que ano passado,
Me destrataste, fingido!
- Mas eu nem tinha nascisdo.
- Pois então foi teu irmão.
- Não tenho irmão, Excelência.
- Chega de argumentação.
Estou perdendo a paciência!
-Não vos zanguei, desculpai!
- Não foi teu irmão? Foi teu pai
Ou senão foi teu avô.
Disse o lobo carniceiro.
E ao Cordeiro devorou

“Onde a lei não existe, ao que parece
A razão do forte prevalece”


Bonitinho, né!? É impressionante como a literatura infantil ensina mais do que a maioria dos trabalhos acadêmicos de sociologia produzidos no Brasil, mas deixemos isso pra lá. A fábula traduz exatamente a prática adotada pelos neo-inquisitores que vagueiam pelas universidades, campos, auditórios, praças e avenidas públicas brasileiras. A condenação já existe previamente, falta agora caçar as bruxas, ou cordeiros se assim o caro leitor preferir, e usar o repertório de acusações disponível para justifica-la. Essa é a lógica da Nova Inquisição. E qual é o crime de fato, aquele que é a real motivação da Nova Inquisição? O de sempre: pensar diferente. A coisa funciona assim: ou você aceita nossa moral, nossa forma de ver o mundo, e nossa história conforme contamos, ou vai para a fogueira. Então, para a Nova Inquisição, há dois grupos antagônicos, os sacerdotes com suas hordas de seguidores e os hereges[i]. Devemos então escolher um dos dois. Bom, como gritar despautérios é mais fresquinho do que queimar na fogueira, muita gente prefere virar seguidor. Há também aqueles seguidores legítimos, esse não é o bunda mole do primeiro caso, são aqueles que de fato se identificam com a moral e com os dogmas dos sacerdotes mais graduados, almejam um dia, quem sabe, se tornar um deles. A Nova Inquisição também tem sua bíblia e seus salmos que são proferidos em tom fúnebre no recolhimento dos templos, onde os seguidores em coro dizem obedientemente: AMÉM. Mas a Nova Inquisição não é esteticamente desprivilegiada, sem beleza, sem cor e sem perfume, isso é coisa do passado. Nos dias atuais, o mundo profano desenvolveu tecnologia que alimenta, veste e equipa os neo-inquisitores. Além do mais, eles aprenderam a cultivar a beleza e a alegria que inspiram tantos artistas e seus dons geniais, como diria Caetano.  A nova inquisição é sagaz, contumaz, tudo o mais que termina com o sufixo – az. Eles acrescentaram ao fundamentalismo sacrossanto uma boa dose de carisma, umas boas colheradas de erotismo e 200 g de romantismo. A mistura é simplesmente explosiva: chamam essa guloseima de “progressismo”. Mas, voltemos a falar de cordeiros, quer dizer, das bruxas... Ahhh, quer saber!? Qual a diferença?!  Vai tudo virar churrasquinho mesmo... Então, com ajuda de um curandeiro especialista em psicografia, consegui o depoimento post-mortem de algumas bruxas da Nova Inquisição.Para proteger a identidade dos depoentes no plano carnal, apresentaremos aqui os pseudônimos em forma de menu:  

Universitário Mal Passado
“Fui estudante em uma famosa instituição de ensino do Brasil, onde quase conclui minha graduação, até que, sabe-se lá Deus porque, resolvi entrar em um debate sobre cotas raciais, na ocasião disse que era contrario às políticas de cotas pois elas em nada ajudariam a reduzir a desigualdade no país, argumentei que tal medida tenderia a selecionar apenas os afrodescendente com boas condições sociais, além de ir contra as leis básicas mendelianas e separar os seres humanos por critérios fenotípicos (agora mudei de ideia pois até aqui no purgatório há seguidores). Pronto, chamaram-me de racista, me amarraram, penduraram em um poste e, aos gritos de “fascista”, atearam fogo e cá estou.”

Cordeiro de Deus ao Ponto
 “(...) caminhava alegremente pela avenida, quando me deparei com uma parada gay, eu até achei bonito toda aquela alegria e cores, mas, para minha infelicidade, dei um pisão no pé de um arlequim multicolorido. Estava apressado, pois queria chegar em casa a tempo do almoço... Porém, fui acusado de agressão. Chamaram-me de homofóbico, me amarraram, e, ao som de it´s raining men, penduraram-me em um poste aos gritos de “conservador”, atearam fogo e cá estou.”

Bruxa Fanfarrona ao Molho Barbecue
“Sempre fui uma pessoa muito alegre, até que um dia, em uma festa do trabalho, resolvi fazer uma piadinha a respeito das cafonices das redes sociais e puxei a conversa fazendo troça com sobrenomes indígenas, lembro que inventei um em forma de trocadilho para usar em meu perfil, algo do tipo: “Aparecida Garanti Kaô Há”. Tá certo que a piada não foi das melhores. Resultado: fui acusada de detratora dos povos indígenas, arrastada pelos cabelos e, aos gritos de burguesa assassina, perduram-me de cabeça para baixo em um poste e agora perambulo pelo limbo sem escalpo e com a cabeça encolhida.”    
   
Língua Neoliberal Flambada     
“Maldita cachaça, certa vez estava em um boteco com amigos, já havíamos bebido umas doses a mais e minha língua começou a se soltar e fugir do meu controle. Foi quando comecei em falar de uma vaca sagrada da NI. Disse que empresas estatais que só elevavam o custo de vida da nação deveriam mesmo ser privatizadas, a começar por aquela que cobra o mais alto preço de combustível de que tenho notícia, a essa hora, sem perceber, eu já estava sendo içado à chaminé do estabelecimento de onde vi o mundo girar, girar, pegar fogo e se acabar. Acordei com uma ressaca tremenda no limbo e com uma enorme dor de cabeça, ainda ouço os ecos de “queimem o neoliberal entreguista”. Alguém tem uma neosaldina aí?”      

Petisco de Gaia
“Sempre pratiquei o maior dos pecados: o ceticismo. Em um debate público acerca do aquecimento global, defendi que o CO2 emitido pelo homem não tem o poder nem mesmo de fazer cócegas no clima global, que é governado por fenômenos cósmicos. Disse ainda que a concentração do “gás profano” na atmosfera era estimada em 0,035%,  que tal número não parece muito expressivo para alterações climáticas em larga grandeza, argumentei que o ciclo natural de carbono é de 200 bilhões de toneladas/ano desse gás lançado na atmosfera, com incerteza de 10% disso para cima ou para baixo. E que as emissões antrópicas correspondem apenas a 3% desse total, ou seja, não chega nem a metade da incerteza adotada. Porém, eu estava enganado, a ação humana aquece sim o planeta, ao menos para mim aqueceu, e muito.” 
  
Mas, algo esta errado, a analogia com a fábula do Fontaine não esta perfeita, ora, ao menos na fabula o cordeiro teve a oportunidade de se explicar... É que a Nova Inquisição dispensa aquilo que o lobo não dispensou: o julgamento, ainda que inútil.



Dominus dominium juros alem, todos esses anos agnus sei que sou também. Mas ovelha negra me desgarrei, o meu pastor não sabe que eu sei da arma oculta na sua mão” (Aldir Blanc)  






[i] É o antigo cânone da luta de classes